Testemunhos
O meu nome é X, tenho 24 anos e sou de um vilarejo do interior mais recôndito de Portugal. Desde muito nova que tenho uma grande aptidão para artes e línguas e necessito de um estímulo cognitivo fora do “normal”. O Pediatra dizia aos meus pais, com frequência, que eu apresentava os parâmetros acima da média esperada para a idade e aconselhou-os sistematicamente a me retirarem todas as fontes de estímulo. Mais tarde, no jardim de infância, eu recusava-me a ir porque sentia que queria aprender, que estava farta de brincar e que lá não conseguia adquirir /apreender nada novo. Fiquei radiante com a entrada para o primeiro ano e perguntei logo à professora assim que a vi ” quando me vai enviar trabalhos de casa?”. Rapidamente aprendia e solucionava os problemas todos que ela apresentava e tinha que esperar pelos outros da turma. Comecei a ficar frustrada porque tinha que ouvir as mesmas coisas dezenas de vezes. Nessa altura a Professora disse à minha mãe que eu poderia ser sobredotada e que talvez fosse melhor para mim transitar diretamente para a 3.ª classe. A minha mãe não se recorda o porquê de eu não ter transitado (estava com depressão) mas garante-me que não fui testada por nenhuma equipa.
Comecei a fartar-me da escola e apenas encontrei estimulação em atividades que desenvolvia em conjunto com as crianças de 4.º ano (e eu era do primeiro). No quinto ano lembro-me de não me relacionar com ninguém porque não tinha interesse em relacionar-me com os pares (julgava-os imaturos e desinteressantes) e apenas conversava com professores. Lia e estudava muito até altas horas da madrugada, tinha um vocabulário muito rico e utilizava palavras e construções frásicas demasiado complexas para a minha idade e que os pares não entendiam. Rapidamente me tornei alvo de bullyng sendo apelidada de “croma”, “rato de biblioteca”, “esquisita”, “estranha”, “crânio”. E era assim que me sentia… estranha. Frequentava religiosamente a biblioteca e perdi a conta aos livros que devorei. Durante as férias de verão (do quinto e sexto ano) implorava aos meus pais que me deixassem estudar inglês e fiz dois cursos intensivos de inglês – no primeiro ano tive aulas com uma nativa inglesa e no segundo com um americano. As aulas eram dadas em inglês e eu estava rodeada de alunos de secundário que não conseguiam aprender a língua e obter qualificação positiva na disciplina. Tornei-me fluente a inglês.
Contudo continuei a ser vítima de bullying e recusei-me a ir para a escola ainda no sexto ano. Fui acompanhada por uma pedopsiquiatra que medicou o meu corpo pequenino com doses mais altas de anti-depressivos do que aquelas que ele podia suportar. No secundário faltava à maioria das aulas, tornei-me rebelde e irresponsável – foi a forma que eu encontrei de me defender do bullying a que era submetida diariamente. Terminei com média de 17 e não consegui entrar em medicina. Atualmente sou licenciada, tenho um emprego no sector público e continuo com imensos problemas em relacionar-me com pessoas, em compreendê-las e a necessitar de estímulos intelectuais fortes para manter a minha mente ativa. Tenho uma boa memória visual e sou capaz de “fotografar” mentalmente qualquer documento e decorar séries de dígitos “sem querer” fazê-lo.
Estou a partilhar a minha história na esperança que me possam ajudar/orientar relativamente à situação que expus acima. Na minha perspetiva, eu “sofri” e “sofro” com a falta de estimulação e mantenho algumas características peculiares que me fazem ter dificuldades em algumas áreas da vida nomeadamente a socialização. Já tive várias depressões graves ao longo da vida e parte disso se deve certamente ao facto de existirem demasiadas perguntas para tão poucas respostas. Sinto que preciso de respostas para que possa ter uma melhor qualidade de vida daqui para a frente e deixar de me sentir e de ser apelidada de “estranha” e “desadequada”.
— De uma jovem adulta sobredotada
Conhecemos a APCS através do excelente trabalho de divulgação e apoio que têm desenvolvido na área das altas capacidades e sobredotação.
Se tivéssemos neste momento condições económicas para o fazer, não hesitaríamos em mudar a nossa vida para o Porto/Gaia e transferir o nosso filho para o agrupamento onde trabalham.
O estigma, a falta de apoio, a desmotivação, o observarmos um declínio pela paixão de aprender, o stress gerado pela desmotivação e falta de desafio, preocupam-nos cada vez mais. O nosso filho esforçou-se ao longo dos anos por se adaptar. Aprendeu a jogar futebol, para ser aceite pelos colegas. Quando um menino não joga futebol, torna-se difícil ter muitos amigos na escola. Por sua vez, os pares, em geral não partilham dos seus interesses, nem das suas paixões. Não se esforçam por se interessar. Uma criança que é obrigada a moldar-se a uma sociedade que não a aceita pelo que é, sucumbe por vezes a pressões de grupo, sofre bullings, torna-se uma criança vulnerável. Ao longo do seu percurso escolar, desenvolveu a ideia de que fazer o mínimo é suficiente. Ainda assim é um excelente aluno, mas sem muita dedicação ou motivação. Começa a pedir para não ir a escola, pois sente que não está a aprender nada de novo. Durante o pré-escolar e o primeiro ciclo, optámos pelo silêncio. Tivemos receio dos rótulos e consequências que a exposição das suas características poderiam trazer. Este ano tivemos uma postura diferente. Falámos com a escola e pedimos ajuda. Deram-nos um documento de diferenciação pedagógica para assinar, mas parece-nos que foi só um pró-forma e uma maneira de nos silenciarem. Sentimos que passaram a ver-nos com outros olhos, os pais “chatos” que têm a mania que o filho é melhor que os outros, e que, de certa forma, isso afastou-os ainda mais do nosso filho. Chegaram a dizer-nos: “Mas sentem que o vosso filho não está apoiado/desafiado, ou querem que ele tire 100% a tudo? Não será excesso de expectativa dos pais?” Nunca tivemos como objetivo as notas, não aceitámos sequer nenhum justificado avanço letivo, sempre privilegiámos o desenvolvimento integral do nosso filho, sobretudo nas áreas em que tem mais dificuldades, como a autonomia em tarefas rotineiras.
Desde que o nosso filho era muito pequenino, sentimos uma forte crítica social, sempre presente. Como se nós pais é que o forçássemos a ter altas capacidades, como se o moldássemos, como se o treinássemos, como se merecêssemos toda a desmotivação que ele enfrenta em contexto escolar por o termos avançado nos seus conhecimentos. Ouvimos diversas vezes que ele ainda não devia saber muitas das coisas que já sabe, que não é bom para ele. Vedam-lhe frequentemente a oportunidade de participar em áreas do seu interesse, por não pertencer à faixa etária a que se destinam. Dizem-nos que, para já, ele deve só “ser uma criança”! Apetece-nos responder que o nosso filho é uma criança! Mas que, ainda assim, adora aprender coisas novas e precisa de desafios constantes, para se sentir feliz e realizado. Durante 5 anos ficámos em silêncio, ocultámos, e normalizamos, pensámos que a adaptação aos pares seria o melhor caminho, numa sociedade que estigmatiza e não está preparada para a diferença. Este ano, por acharmos que o silêncio e a normalização não resultam afinal, falámos e pedimos ajuda, mas sentimos que ninguém nos levou a sério, é como se, tendo ele tantas capacidades, não precisasse de qualquer apoio. Antes pelo contrário, é deixado completamente à deriva, entregue às suas próprias capacidades e incapacidades. Não fosse o constante apoio e desafio que tentamos providenciar fora do contexto escolar, o quadro de desmotivação e frustração seria certamente pior.
Estamos tristes, sentimo-nos cansados e perdidos. Observamos uma criança brilhante, apaixonada, cheia de entusiasmo, a ficar cada vez mais desmotivada, mais desinteressada, a perder o brio e a autoestima. Temos tentado apoiar da melhor forma que conseguimos, mas sentimos que não chega, precisamos de ajuda. Precisamos de um sistema de ensino que apoie estas crianças, que compreenda o seu desenvolvimento assincrónico. Que compreenda que as altas capacidades são fator de desmotivação, perante um sistema de ensino que obriga todos os alunos a caminharem à mesma velocidade. Precisamos de uma sociedade que compreenda que ter altas capacidades não é uma construção nem tão pouco uma ameaça. Que a criança com altas capacidades enfrenta diversos desafios, e que, tal como uma criança com dificuldades, precisa de apoio específico, para se desenvolver da melhor forma.
Precisamos de um mundo que compreenda o significado da palavra equidade, pois a falsa crença na igualdade não tem trazido respostas para tantas crianças, com necessidades tão diversas.
Agradecemos à APCS o importante trabalho que têm desenvolvido nesta área, e todo o apoio que possibilitam a estas crianças e às suas famílias.
— De uma família do centro do país